Fonte: http://bighugelabs.com/flickr/onblack.php?id=254714625&size=Large
Numa manhã em que uma fina garoa tilintava na vidraça do quarto, Jozi acordou e sentiu o cheiro ocre e sóbrio dos livros empilhados ao lado do travesseiro. Ainda de olhos fechados, decidiu que naquele dia seria menor do que de costume. Então, levantou-se e trocou o salto plataforma pelas solas nuas dos pés.
Desceu as escadas com a felicidade maquiavélica e ingênua de quem roubou um livro. Pegou sua caneca transparente que guardava em cima da televisão sempre desligada. Foi até a cozinha procurar algo que preenchesse a caneca e desse-lhe cor. Adivinhou o café negro e frio da madrugada anterior dentro do bule. Serviu-se e propositalmente esqueceu do açúcar.
Jozi abriu a porta, foi até o jardim e sentou-se num banco. Ali ficou observando a caneca com o café. Pensou como era engraçado: o café preenchia a caneca, mas ainda não lhe trazia cor, visto que preto não é cor, mas sim a ausência dela. Então, Jozi riu baixinho. Nossa, estava pensando como Palomar, ou seria como Franciele?
Ao pensar nisso, Jozi sentiu o Sol aparecer entre as nuvens e secar-lhe um pouco o rosto molhado da garoa. Olhou para frente e viu Franciele entrando pelo portão. Ela usava uma comprida saia colorida que deixava apenas seus pés descalços à mostra. Na mão, trazia uma caneca pintada com todas as cores existentes. Ela nunca havia conseguido ser mono espectral. Seu olhar era cansado, como o daqueles que sentem demais.
Sem dizer uma palavra, Franciele sentou-se ao lado de Jozi. Não é que faltasse o que dizer, mas sim que elas não necessitavam de palavras para se compreenderem. Afinal, palavras haviam sido feitas para serem escritas ou tatuadas na pele.
Jozi olhou a caneca vazia de Franciele. Então, colocou metade do seu café ali dentro. Franciele sorveu tudo num único gole. O café gelado e amargo tirou um pouco do cansaço de seus olhos. Jozi retirou uma pequena chave de dentro de sua caneca, devagar colocou-a no ouvido de Franciele e girou duas vezes. Num instante, a cabeça dela se abriu e Jozi pôde retirar de lá um livrinho Amarelo que continha ao mesmo tempo toda a grandeza vazia do Universo e toda a pequeneza preenchida de Franciele.
Jozi abriu o livro e leu algumas palavras com os olhos. Retirou a primeira e a última página. Picou-as em pedaços minúsculos e adoçou o café com elas. De imediato, sua caneca transparente ganhou cor.
Texto escrito para minha grande amiga e professora Jozi. Conosco é sempre assim: uma leva o café e a outra o açúcar.