sexta-feira, 27 de junho de 2008

Desafinação


Crônica produzida há muito tempo. Também inacabada.


Inglaterra, outono de 1953. Parque. Um garoto corre, corre. As folhas secas esvoaçando. Gerard corre com a flauta nas mãos. Tem os olhos vermelhos e úmidos. Chorara. Gerard não era um garoto comum. Sua flauta sempre tilintava na madrugada. Ele nem conhecia as notas musicais, mas sabia criá-las. Sua música não era reconhecida por todos. Por isso ele corria e chorava.


Talvez Gerard achasse que correr o livraria de toda a dor, de toda a angústia. Não livrava. Apenas lhe causava fadiga e dores nas pernas. Isso bastava. Por alguns instantes ele se esquecia das dores do coração e se importava com as dores físicas. Ele também gostava do som das folhas secas quebrando em baixo de seus pés. Por um momento, ele era senhor. Senhor do parque, senhor das folhas. Capaz de subjugá-las e passar por cima delas, quebrá-las. Mas não, ele as amava. Só as quebrava porque sabia que elas amavam seus pés tanto quanto. E sabia que o verdadeiro destino das folhas secas era serem pisadas por ele. Ele só não sabia qual era o seu destino. E se não sabia, preferia não pensar nisso.


Gerard morava com os pais em uma casa antiga no interior de Oxford, mas vivia sozinho. Advogado, médico: era o que seus pais queriam que ele fosse. Mas Gerard só queria fazer a sua música. A mesma música que desagradava a todos, produzida por uma flauta encontrada em um terreno baldio qualquer. Mas, também era o destino da flauta ser tocada por Gerard. E ele sabia disso.


Por ser um garoto um tanto especial, incomum para a época e para os costumes tradicionais, Gerard vivia isolado. Tinha poucos amigos, a flauta era o melhor deles. Viviam sempre juntos, confidentes um do outro. A flauta contava-lhe seus segredos, ensinava sua música a Gerard. Ele a ouvia atentamente, acariciava-lhe, soprava-lhe nos dias de verão. Gerard não era um menino triste, mas também não era nem de longe feliz. Sempre sentia que faltava alguma coisa. Percebia que as pessoas repudiavam-no, mas jamais sentiria DÓ de SI mesmo. Sempre poderia correr, sentir as folhas embaixo dos pés, tocar sua flauta (doce flauta) e sentir o SOL no rosto. Bendito SOL.



"Acordei bemol

Estava tudo sustenido

Sol fazia

só não fazia sentido"

(Paulo Leminski)

Do meu estar (é uma confissão, não um texto literário)

M. C. Escher

Estou em constante mutação. Caleidoscopicamente mutante, like Lucy in the sky. Mas atualmente (leia-se 'nos últimos meses') tenho passado por um novo processo nunca DANTEs experimentado. Um processo quase cartesiano.Trata-se de um auto-destruir-se para posteriormente reconstruir-se ou deixar-se destruído (o que há de errado em não-ser uma fortaleza?).

Na prática, tenho me livrado de todas as verdades que tinha como absolutas. Tenho destruído todos os conceitos prontos que tinha (e não eram poucos). Aliás, já fui uma estante de conceitos e fórmulas prontas. Era só se deter uns minutos e pick up uma verdade. Eu me achava boa por ter sempre respostas prontas, por ter tudo pronto enlatado e prestes a ser digerido.

De fato, cansei-me. Sofri por ser prisioneira de mim mesma, por amarrotar minha liberdade e colocá-la no fundo da gaveta.Agora estou abrindo o armário, retirando as traças, jogando as roupas velhas fora. A liberdade? Ainda continua amarrotada lá no fundo. Não posso tirá-la de lá sem antes organizar todo o armário.

Intelectualmente continuo praticamente a mesma. Tenho uma habilidade forte para Exatas, mas também tenho a Humanidade gritando dentro de mim. Amo as equações e problemas físicos tanto quanto amo as obras literárias e a filosofia.

Minhas tendências sempre foram as Exatas, principalmente por causa da Astronomia (sim, a Astronomia! - ela merece um post específico posteriormente) e da Física. Mas o meu lado Humano é forte demais para ser ignorado. Quincas Borba chamaria isso de Humanittas. Pobre Quincas. Não foi o único a enlouquecer.

Um amigo (grande amigo!) já me disse: "Eu ia gostar muito de te ver fazendo Letras". Eu também iria gostar. Mas o que eu faria com meu lado Exato? Será que as equações e fórmuls gritariam dentro de mim, assim como Clarice, Kafka, Calvino e Saramago gritam atualmente? Não sei.

Psicologicamente ocorreram algumas mudanças. Sinto-me muito mais madura do que antes, mas, ao mesmo tempo, muito mais frágil. Alguns amores corrompidos, alguns fracassos e auto-decepções, muitos erros cometidos, muito sofrimento e alguns sentimentos suicidas me fizeram crescer, mesmo sem perceber. Passei a me focar mais em meus objetivos (sequer os tenho), selecionar melhor os meios para alcançá-los, fazer as coisas direito. Hoje não cometeria mais os mesmos erros do passado. Tudo o que externamente tem me afetado nos últimos tempos criou alguma espécie de redoma em volta de mim. Selecionei amigos, afastei-me definitivamente das antipatias, criei um sarcasmo que funciona quase como um lança de ponta envenenada (sweet poison). Agora minhas relações se tornaram muito mais verdadeiras e saudáveis do que antes, com a medida certa de superficialidade para nunca faltarem risadas e ninguém se machucar.

Não me sinto melhor por isso. Até porque meu estado emocional impede que alguma coisa me faça sentir melhor. Mas agora tenho a solidão necessária para a minha auto-destruição e reconstrução. A solidão traz uma certa liberdade de pensamento e de julgamento, que ninguém que possui 500 amigos consegue ter.

De fato, estou num momento em que minha única companhia pode ser eu, nem meu alter ego pode ser incluído.